Andrew Marantz, colunista do The New York Times, publicou recentemente uma discussão sobre a tênue linha separando liberdade de expressão e discurso de ódio. No artigo Free Speech is Killing Us (A Liberdade de Expressão está nos Matando) [1], o jornalista faz referência à lei americana – que garante a liberdade de expressão –, ao mesmo tempo em que relata atos de violência estimulados ou incitados pelo discurso de ódio online. A conclusão do autor é bastante clara:

“Usar ‘liberdade de expressão’ como argumento [para justificar discurso de ódio] é tão intelectualmente desonesto quanto moralmente falido”

E ele prossegue:

“A liberdade de expressão é um valor fundamental... Mas não é o único. Como todos os outros valores, ele deve ser equilibrado com os outros, como igualdade, segurança e participação democrática robusta”

Acredito que com exceção de alguns radicais, poucos discordariam disso. A maioria das pessoas me parece, sinceramente, a favor da igualdade, da segurança e da democracia. Mesmo aqueles que defendem a instauração de um regime militar parecem fazê-lo na esperança de que isso reduziria a criminalidade e a corrupção e consequentemente ampliaria a liberdade e a segurança do cidadão comum. O debate sobre a validade ou não de um regime militar como meio de melhorar o país foge ao escopo deste texto. O que nos interessa é: a maioria das pessoas realmente parece ter boas intenções. 

Onde, afinal, começa o problema?

As discordâncias parecem ser maiores no que diz respeito ao quanto as pessoas acreditam que palavras ditas na internet são capazes de estimular atos de violência no mundo fora das telas. A lógica e o conhecimento que temos a respeito de como o comportamento humano funciona indicam que sim, mas o que as pesquisas sobre o tema nos dizem?

Um estudo publicado no The British Journal of Criminology [2], em julho de 2019, buscou responder à pergunta. Os autores cruzaram dados de crimes offline registrados pela polícia, censo governamental e análise de publicações odiosas no Twitter para verificar se existia associação entre a quantidade de publicações de ódio online e a ocorrência de crimes religiosos e raciais em Londres. Foram levadas em consideração apenas postagens realizadas por pessoas que se encontravam dentro da cidade de Londres e que continham postagens expressando ódio contra minorias raciais e religiosas.

A conclusão dos pesquisadores foi de que existe uma associação forte entre a quantidade de publicações com conteúdo odioso e o aumento de crimes violentos, de assédio e outras ações danosas contra as mesmas pessoas e grupos que foram alvo das publicações. Eles explicam que essa associação existe independente da ocorrência de “situações gatilho”, o que significa que a violência acontecia gratuitamente, sem que os alvos tenham feito algo que provocasse os agressores (ex.: tenham cometido algum crime ou ato de violência anteriormente).

Um alerta importante!

Esse dado dispara um alerta: aquilo que você publica pode ter consequências que vão além dos likes e comentários de seus seguidores em resposta a seu post, ainda que você não tenha consciência disso. 

Parece estranho? Eu entendo. Não somos acostumados a pensar sobre as consequências do que dizemos na internet. Internet ainda é um ambiente relativamente novo para o ser humano e muito do que acontece ali pode parecer muito abstrato ou distante demais para algumas pessoas – afinal, elas não estão vendo, ouvindo ou sentindo na pele essa violência. Compreender aquilo que está além do alcance de nossos sentidos demanda habilidades que nem todos puderam desenvolver. 

De que forma o que publicamos pode influenciar a violência?

O que lemos, ouvimos e assistimos na internet influencia nossas crenças e nossos sentimentos sobre o mundo [3]. Por exemplo, se vemos muitas publicações relacionando a população LGBTQI+ àquilo que consideramos inaceitável socialmente, àquilo que temos medo ou que nos gera raiva ou sofrimento, naturalmente começamos a sentir raiva, medo ou rejeição em relação a esta população. O mesmo processo acontece com qualquer outro grupo ou pessoa. Existem diversos relatos de pessoas que foram agredidas ou até mortas após boatos sobre elas se espalharem nas redes sociais. O caso da Fabiane Maria de Jesus (33), moradora da cidade de Morrinhos, é apenas um exemplo entre vários possíveis. 

Existem evidências [5] também de que o discurso de ódio na internet funciona como uma espécie de permissão ou prova social de que atitudes violentas são aceitáveis (ex.: se vejo muita gente falando que deseja eliminar algum grupo, então isso parece aceitável); acostuma as pessoas a ideias sobre agressão (ex.: passa a ser normal pensar em agredir alguém ou um grupo, então, pensamentos do tipo se tornam mais frequentes e passam a ser os primeiros a surgir quando há oportunidade); recompensa pessoas que tem comportamentos agressivos (ex.: se vejo alguém sendo admirado por agredir um grupo ou pessoa da oposição, aprendo que isso é desejável) e pune vozes de objeção (ex.: aprendo que pessoas que são contrárias a manifestações agressivas são rechaçadas, portanto, menos provavelmente discordarei).

E o que cada um de nós tem a ver com isso?

Isso significa que a cada vez que você expressa desprezo ou ódio por alguém ou por algum grupo específico, você pode estar estimulando a violência física sem saber disso. É preciso ter em mente que muitas pessoas são mais impulsivas do que você e não conseguem conter o próprio comportamento agressivo. Além disso, muitas pessoas estão expostas também fora das redes sociais a condições que estimulam a violência, como ter crescido em um ambiente familiar violento, conviver com amigos e colegas que são violentos ou valorizam a violência ou já terem sido violentos e não terem recebido punição adequada, para citar apenas alguns exemplos entre tantos outros possíveis. 

Se você não deseja estimular online a violência física fora da internet é necessário selecionar com mais cuidado quais coisas irá postar em suas redes. Posts com assuntos neutros ou positivos precisam ser publicados com mais frequência e merecem receber mais curtidas, comentários e compartilhamentos quando postados por outras pessoas. Isso ampliaria o alcance deste tipo de assunto, além de incentivar as pessoas a publicarem mais conteúdos do gênero. 

Também precisamos denunciar publicações com discurso de ódio sempre que pudermos. É possível denunciar na própria rede social (ex.: instagram, facebook, twitter) para que o post seja analisado e possivelmente apagado. Além disso, a Safernet (http://new.safernet.org.br/) também tem um canal para denúncia de crimes online. Situações de violência também podem ser denunciadas pelo Disque 100, número do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos dedicado a receber denúncias da população em geral. 

Façamos nossa parte! 

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Esequias Caetano é Psicólogo e, para além da clínica, dedica-se ao estudo dos aspectos comportamentais/ psicológicos da política, cultura e economia. 

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MATERIAL CONSULTADO

[1] Marantz, A. (2019). Free Speech is Killing Us: Noxious language online is causing real-world violence. What can we do about it?. Link: https://nyti.ms/35xuP5t

[2] Williamns, M. and Cols. (2019). Hate in the Machine: Anti-Black and Anti-Muslim Social Media Posts as Predictors of Offline Racially and Religiously Aggravated Crime. Link: https://bit.ly/2OxtbJW

[3] Todorov, J.C., Martone, R.C., & Moreira, M.B. (eds.). (2005). Metacontingências: Comportamento, Cultura e Sociedade

[4] Venturini, L. (2018). A violência na Eleição. E o efeito do discurso dos candidatos. Link: https://bit.ly/35xvt2T

[5] Bojarska, K. (2018). The Dynamics of Hate Speech and Counter Speech in Social Media: Summary of Scientific Research. Link: https://bit.ly/2OKki02